“[…] quem pecou?” João 9:2
Já
refletimos em outros textos a respeito da natureza do que é, de fato,
Cristianismo (lembrando que, como mencionado no texto #71, esta
palavra sequer aparece nas Escrituras Sagradas). O propósito aqui é considerar
a possibilidade de que Cristianismo talvez não seja nada além de um corpo de
ações relacionadas a Cristo. Não necessariamente uma idéia (algo abstrato), mas
ações. Se há certas ações, há Cristianismo. Se não as há, não há Cristianismo.
Gênesis
2 afirma, logo após à criação do homem, que não é bom que este viva só.
Tradicionalmente usa-se este texto para afirmar o plano divino com relação ao
casamento entre um homem e uma mulher. Curioso, no entanto, é que uma das
características mais fundamentais do que significa ser humano, é relacionar-se.
Como diria Heschel: a verdadeira existência culmina em co-existência. Juntos,
homem e mulher foram criados para refletir a imagem de um DEUS que também
existe na esfera das relações (Pai-Filho-Espírito). Relacionarmo-nos e
relacionamentos –a maneira como tratamos uns aos outros– está no âmago do que
significa sermos humanos.
Isto
se torna evidente não apenas na maneira como Cristo vivia, mas estava no cerne
daquilo que Ele ensinava. Jesus era sensível às necessidades das pessoas não
com foco nas necessidades, mas nas pessoas. Se a verdadeira existência (ou
existência plena) é a co-existência, é do bem estar do outro que depende meu
próprio bem estar. E esta sensibilidade parece ser um dos requisitos para o
corpo de ações que caracterizam o Cristianismo. Pois onde há sensibilidade,
ressoa aquilo que Cristo fazia e ensinava.
João
9:1-3 diz: “E, passando Jesus, viu um homem cego de nascença. E os seus
discípulos lhe perguntaram, dizendo: Rabi, quem pecou, este ou seus pais, para
que nascesse cego? Jesus respondeu: Nem ele pecou nem seus pais; mas foi assim
para que se manifestem nele as obras de Deus.”
A
narrativa parece simples. Um homem cego, a pergunta dos discípulos e a resposta
e ação de Jesus. Nossa tendência é ler a história como se fôssemos o cego, o
objeto da ação de Cristo. Mas esta, assim como muitas outras histórias nos
Evangelhos, visa ressaltar a fundamental diferença entre Jesus e os discípulos,
Jesus e os fariseus, Jesus e todos os seres humanos.
À
vista de um cego (posteriormente identificado como mendigo) os discípulos de
Jesus, ao invés de auxílio, propõem uma pergunta teológica. E uma das grandes
incoerências de nossa cultura religiosa ainda hoje é exatamente esta: uma
teologia (ciência de DEUS) proposta em alienação ao sofrimento não apenas da
humanidade, mas do próximo. Procuramos resolver questões teológicas, muitas
vezes perdendo de vista quem está bem do nosso lado.
O
texto parece sugerir, a começar pelos discípulos e culminando nos fariseus no
final do capítulo, a seguinte pergunta: quem, afinal, é cego? Quem possui, de
fato, o conhecimento de DEUS? O cego, ou os que não o enxergam em sua
necessidade (discípulos)? O cego, ou os que a cada testemunho dele se tornam
mais incrédulos (fariseus)?
Não
é por acaso que Jesus, logo em seguida, faz um discurso a respeito da
importância de fazer as obras do Pai. Cristo era um com DEUS Pai, porque fazia
Suas obras; e nós seremos um com Cristo na medida em que fizermos Suas obras,
que são as mesmas de DEUS Pai. Sensibilidade para o sofrimento e a condição
humana não como um exercício filosófico, abstrato, mas enxergando além do rosto
do mendigo, do colega que nos perturba no trabalho, do empresário injusto,
do funcionário desonesto, do parente interesseiro, etc., para enxergar a imagem
e semelhança de DEUS, a dignidade humana que o próprio DEUS deu a cada um de
nós e que nada - nem o pecado!– pode nos tirar.
Jesus
cospe no chão e, com o mesmo barro com que –milênios antes– formou Adão,
re-cria o homem cego não somente para que este veja, mas para que, através
dele, as obras do Pai pudessem ser vistas. Abrimos mão da nossa humanidade no
momento em que nos tornamos insensíveis uns aos outros. Mas desenvolvemos a
sensibilidade humana-e por que não dizer cristã?– a partir do momento em que
reconhecemos quão conectados estamos uns aos outros, e todos com DEUS.
Que
Ele gere em nós esta sensibilidade. Que Ele gere em nós Cristianismo.
Fonte:
http://terceiramargemdorio.org/texto/120/