quinta-feira, 14 de setembro de 2017

#120

“[…] quem pecou?” João 9:2

Já refletimos em outros textos a respeito da natureza do que é, de fato, Cristianismo (lembrando que, como mencionado no texto #71, esta palavra sequer aparece nas Escrituras Sagradas). O propósito aqui é considerar a possibilidade de que Cristianismo talvez não seja nada além de um corpo de ações relacionadas a Cristo. Não necessariamente uma idéia (algo abstrato), mas ações. Se há certas ações, há Cristianismo. Se não as há, não há Cristianismo.
Gênesis 2 afirma, logo após à criação do homem, que não é bom que este viva só. Tradicionalmente usa-se este texto para afirmar o plano divino com relação ao casamento entre um homem e uma mulher. Curioso, no entanto, é que uma das características mais fundamentais do que significa ser humano, é relacionar-se. Como diria Heschel: a verdadeira existência culmina em co-existência. Juntos, homem e mulher foram criados para refletir a imagem de um DEUS que também existe na esfera das relações (Pai-Filho-Espírito). Relacionarmo-nos e relacionamentos –a maneira como tratamos uns aos outros– está no âmago do que significa sermos humanos.
Isto se torna evidente não apenas na maneira como Cristo vivia, mas estava no cerne daquilo que Ele ensinava. Jesus era sensível às necessidades das pessoas não com foco nas necessidades, mas nas pessoas. Se a verdadeira existência (ou existência plena) é a co-existência, é do bem estar do outro que depende meu próprio bem estar. E esta sensibilidade parece ser um dos requisitos para o corpo de ações que caracterizam o Cristianismo. Pois onde há sensibilidade, ressoa aquilo que Cristo fazia e ensinava.
João 9:1-3 diz: “E, passando Jesus, viu um homem cego de nascença. E os seus discípulos lhe perguntaram, dizendo: Rabi, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego? Jesus respondeu: Nem ele pecou nem seus pais; mas foi assim para que se manifestem nele as obras de Deus.”
A narrativa parece simples. Um homem cego, a pergunta dos discípulos e a resposta e ação de Jesus. Nossa tendência é ler a história como se fôssemos o cego, o objeto da ação de Cristo. Mas esta, assim como muitas outras histórias nos Evangelhos, visa ressaltar a fundamental diferença entre Jesus e os discípulos, Jesus e os fariseus, Jesus e todos os seres humanos.
À vista de um cego (posteriormente identificado como mendigo) os discípulos de Jesus, ao invés de auxílio, propõem uma pergunta teológica. E uma das grandes incoerências de nossa cultura religiosa ainda hoje é exatamente esta: uma teologia (ciência de DEUS) proposta em alienação ao sofrimento não apenas da humanidade, mas do próximo. Procuramos resolver questões teológicas, muitas vezes perdendo de vista quem está bem do nosso lado.
O texto parece sugerir, a começar pelos discípulos e culminando nos fariseus no final do capítulo, a seguinte pergunta: quem, afinal, é cego? Quem possui, de fato, o conhecimento de DEUS? O cego, ou os que não o enxergam em sua necessidade (discípulos)? O cego, ou os que a cada testemunho dele se tornam mais incrédulos (fariseus)?
Não é por acaso que Jesus, logo em seguida, faz um discurso a respeito da importância de fazer as obras do Pai. Cristo era um com DEUS Pai, porque fazia Suas obras; e nós seremos um com Cristo na medida em que fizermos Suas obras, que são as mesmas de DEUS Pai. Sensibilidade para o sofrimento e a condição humana não como um exercício filosófico, abstrato, mas enxergando além do rosto do mendigo, do colega que nos perturba no trabalho, do empresário injusto, do funcionário desonesto, do parente interesseiro, etc., para enxergar a imagem e semelhança de DEUS, a dignidade humana que o próprio DEUS deu a cada um de nós e que nada - nem o pecado!– pode nos tirar.
Jesus cospe no chão e, com o mesmo barro com que –milênios antes– formou Adão, re-cria o homem cego não somente para que este veja, mas para que, através dele, as obras do Pai pudessem ser vistas. Abrimos mão da nossa humanidade no momento em que nos tornamos insensíveis uns aos outros. Mas desenvolvemos a sensibilidade humana-e por que não dizer cristã?– a partir do momento em que reconhecemos quão conectados estamos uns aos outros, e todos com DEUS.
Que Ele gere em nós esta sensibilidade. Que Ele gere em nós Cristianismo.

Fonte: http://terceiramargemdorio.org/texto/120/

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