Sem
máscara, menino autista foi barrado em viagem para conhecer o mar.
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José Medeiros |
Gabriel
Malek Hannah, 9 anos, saiu de casa para conhecer o mar. Não passou
do aeroporto. Autista, o menino não aceita nem boné na cabeça.
Máscara, só amarrando, uma violência que o pai jamais lhe faria.
Mesmo com essa condição, o embarque não deveria ser um problema.
Uma lei federal garante viagens aéreas, terrestres e marítimas sem
máscara para quem é autista. Só faltou os funcionários da
companhia aérea conhecerem a legislação.
O
garoto e os pais não foram questionados no check-in e nem no raio-x
do aeroporto. Mas família com criança autista está acostumada a
contratempos provocados por terceiros. Quando o embarque começou a
ser organizado, o pai do menino, Richard Malek Hannah, 46 anos, foi
ao balcão se certificar de que o filho poderia entrar no avião.
Recebeu um não.
"Fiquei
com muita raiva por dois motivos. Primeiro, porque liguei lá no SAC
[Serviço de Atendimento ao Consumidor] da Latam. A moça disse que
era só apresentar a lei e o laudo médico. Outra coisa que me deixou
nervoso foi falarem que não conheciam a lei. É uma lei federal."
A
assessoria de imprensa da Latam enviou nota lamentando o ocorrido e
informou que atualizou seus funcionários a respeito dos
procedimentos e das leis referentes ao uso de máscara. A companhia
ressaltou que as regras envolvendo prevenção à covid-19 mudam com
frequência.
Postura
nova que não chegou a tempo de atender Gabriel. Richard conta que
ligou para o SAC da Latam cinco dias antes do embarque, marcado para
15 de dezembro do ano passado. Àquela altura, Luciane Cristina Malek
Hannah, 46 anos, preparava o filho para viagem. Gabriel tem
hipersensibilidade a barulhos e ela ambientava o garoto aos sons do
aeroporto e do motor do avião.
O
ritual de preparação também incluía arrumar a mala com roupas de
banho e de festas de final de ano. A família iria para São Paulo
numa viagem especial. Passaria o Natal e o Ano-Novo com a tia de
Gabriel. Também estava programada uma descida ao litoral, onde o
menino conheceria o mar.
Embarque
frustrado.
A
família chegou ao aeroporto de Cuiabá por volta das 10 horas da
manhã. O garoto, que só come alimentos amassados, logo almoçou
para não sentir fome no voo. Mas sua primeira vez no avião foi
adiada.
Ao
ser impedido de embarcar, Richard mostrou a lei que dá direito a
autistas viajarem sem máscara e apresentou o laudo médico. Os
funcionários da Latam no balcão de embarque consultaram a
supervisão da companhia no aeroporto de Cuiabá. Ninguém conhecia a
lei.
Os
pais de Gabriel procuraram a Polícia Federal. Ouviram que estavam
amparados pela legislação, mas que a corporação não tinha
poderes para agir. Richard procurou a Polícia Militar, mas ninguém
atendeu as ligações. Era meio-dia, o avião partiria em 15 minutos.
O casal não sabia, mas as portas da aeronave já estavam fechadas.
Ninguém mais entraria naquele voo.
Procon
entra na história.
Desamparado,
Richard ligou para uma mãe que também tem filho autista. Foi
orientado a procurar o Procon, o melhor conselho do dia. Em 20
minutos, dois advogados chegavam ao aeroporto para mediar a situação.
Até
então, Gabriel se mantivera calmo. Ele tem hipersensibilidade para
cores e estava fascinado por uma luz no teto do aeroporto que
projetava um círculo no piso. Era o único que conseguia se
divertir. Mas a hipnose acabou quando acompanhou os pais, os
funcionários da Latam e os advogados do Procon até uma sala.
Richard
conta que Gabriel foi tratado como uma ameaça sanitária pelos
atendentes da empresa aérea. O menino não fala e demonstra os
sentimentos à sua maneira. Ele se retraiu e não conseguia mais
comer. Só foi se alimentar novamente em casa, no final do dia.
Luciane ficou irritada. Depois, a raiva virou lágrima.
"Minha
esposa chorou. Ela preparou a viagem e nunca esperou que uma empresa
do tamanho da Latam ia deixar de seguir a lei. A gente espera isso de
uma empresa pequena aqui da região, não de uma empresa deste
porte."
Confrontada
pelos advogados do Procon, a Latam aceitou consultar seu departamento
de saúde. Descobriram que Gabriel poderia estar no voo. O pai do
garoto não reclama dos funcionários, mas dos superiores.
"A
moça não tem culpa. Ela estava seguindo as regras da empresa."
A
caminho da praia.
Ficou
acertado que a família viajaria no mesmo horário no dia seguinte.
Eles chegaram em São Paulo em 16 de dezembro para aquela que era uma
viagem os sonhos. Richard é contador e a esposa se dedicava a cuidar
do filho. O casal não tinha dinheiro para férias tão distantes de
Cuiabá. Só estava em outro estado porque ganhou as passagens da tia
do menino.
No
dia seguinte à chegada, Richard e Luciane amontoaram as coisas no
carro para ir à praia. Gabriel ficou amuado. A última vez que suas
malas foram parar num veículo desconhecido era o Uber do aeroporto
de volta para casa depois da tentativa frustrada de viajar. O garoto
temeu que o passeio estivesse acabado de novo. Relaxou somente quando
percebeu que o caminho era diferente do que está acostumado a fazer
em Cuiabá.
A
família rumou para uma praia pouco frequentada do litoral paulista e
Gabriel fez o que se espera de uma criança. Não queria mais sair da
água e passou os dias brincando. Richard comemorava porque era a
primeira vez desde o nascimento do filho que os três viajavam para
longe.
Última
recordação.
Richard
disse que a melhor coisa que aconteceu foi ter procurado o Procon. O
contador afirma que uma intervenção da polícia acabaria em boletim
de ocorrência e processo. A Latam foi multada em R$ 3,1 milhões por
descumprir o direito do autista — a empresa informou que vai
apresentar esclarecimentos ao Procon. Com o órgão de defesa do
consumidor agindo, a família viajou e ele entrou com processo por
dano moral da mesma maneira.
Essas
férias tiveram um significado especial na história da família. Em
agosto do ano passado, os pais perceberam que Gabriel estava
regredindo, já não conseguia mais sair às ruas porque o barulho do
trânsito o incomodava. Mesmo com a pandemia, o casal decidiu retomar
o tratamento e levar o garoto ao psicólogo e à musicoterapia.
Em
fevereiro, passaram a fazer o tratamento completo. Mas Luciane foi
infectada pelo coronavírus. Conforme o quadro clínico se agravava,
a preocupação da família crescia.
Gabriel
ficou órfão de mãe em 8 de março, Dia Internacional da Mulher.
Fonte:
Em
https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2021/08/25/desrespeito-a-direito-do-autista-adiou-viagem-de-menino-para-conhecer-o-mar.htm?cmpid=copiaecola