Gino
Bartali foi um dos grandes campeões do esporte – mas poucos sabiam
das arriscadas missões que cumpria durante os treinamentos.
"Quero
ser lembrado por minhas conquistas esportivas. Heróis de verdade são
outros, aqueles que sofreram na alma, no coração, no espírito, na
mente, que sofreram por seus entes queridos. Esses são os
verdadeiros heróis. Eu sou só um ciclista."
Há
20 anos, a lenda italiana do ciclismo Gino Bartali morria de ataque
cardíaco, aos 80. Ele vencera três vezes o Giro d'Italia e duas
vezes a Tour de France — duas das competições mais importantes do
esporte.
Foi
só após sua morte que veio à tona a informação de que ajudar a
salvar as vidas de mais de 800 pessoas durante a Segunda Guerra.
Mas
como isso aconteceu? Como um dos mais famosos atletas da Itália
conseguiu essa façanha? E a resposta está no tempo livre — do
mesmo tipo que muitos esportistas puderam dispor nesses tempos de
pandemia por causa da suspensão de competições — que teve quando
as grandes provas do ciclismo foram interrompidas pela Segunda Guerra
Mundial.
O
Giro teve uma pausa de cinco anos. A Tour, de sete. A interrupção
impediu Bartali de ser ainda mais vitorioso no ciclismo em seu ápice
físico — mas permitiu que ele se engajasse em uma arriscada tarefa
para salvar centenas de judeus das garras dos nazistas.
Bartali
é visto, até hoje, como um dos mais heroicos entre os ciclistas.
Quando venceu sua primeira Tour de France, em 1938, era tratado como
o "o segundo italiano mais famoso" do mundo, atrás apenas
de Benito Mussolini, líder do Partido Nacional Fascista.
Mas
a Era Mussolini foi um período difícil para os ciclistas
profissionais na Itália, especialmente para aqueles que não queriam
se envolver em política.
No
Giro d'Italia de 1940, o último realizado antes da interrupção
causada pela guerra, Bartali foi apresentado ao homem que se tornaria
seu rival mais feroz: Fausto Coppi, um competidor esguio de 20 anos
oriundo de uma família de agricultores no norte da Itália.
A
rivalidade começou quando Coppi foi alçado a líder de equipe após
Bartali ter se machucado em um acidente com um cão na segunda etapa
do Giro.
Coppi
surpreendeu a todos quando conseguiu vestir a Maglia
Rosa (camisa
usada durante as etapas pelo competidor que está liderando a
competição) em sua primeira participação em um Grand Tour. Mas as
etapas mais difíceis ainda estavam por vir — como a subida das
Dolomitas (uma cordilheira nos Alpes orientais).
Na
décima-sexta etapa, Bartali viu Coppi à beira da estrada sofrendo
com problemas estomacais.
Com
humildade, Bartali o convenceu a subir novamente em sua bicicleta. Os
dois subiram as Dolomitas e continuaram como parceiros pelo restante
do Giro.
Bartali
conseguiu vencer outras duas etapas. Coppi venceu na classificação
geral com uma vantagem de dois minutos e quarenta segundos.
"Algumas
medalhas são penduradas na alma, não na roupa", disse Bartali
certa vez.
O
que não se sabia na época, é que Gino Bartali arriscou sua vida
para entregar documentos falsos durante seus treinamentos — e
desafiar o Partido Fascista.
Fausto
Coppi e outros ciclistas haviam sido convocados para servir às
forças armadas, mas foram autorizados a competir nas poucas corridas
que ainda foram realizadas durante a guerra.
Bartali,
cristão devoto, continuou a realizar seus longos treinamentos no
norte da Itália.
Até
1943, a Itália era território seguro para os judeus. Então, os
nazistas começaram a ocupar o país e a enviar tanto judeus quanto
quaisquer outros que combatessem o regime fascista para campos de
concentração.
Foi
quando Bartali se juntou à organização clandestina Rede Assisi,
operada por um setor da Igreja Católica, para proteger quem
estivesse sob ameaça.
Fazendo
treinos de longa distância, ele levava, escondidos na estrutura da
bicicleta, documentos de identidade falsificados.
Os
documentos, fabricados por uma rede clandestina na Itália, eram
levados dentro dos tubos do guidão e do canote do selim.
Bartali
passava por pontos de controle sem grandes explicações, já que era
apenas um campeão em treinamento.
Em
uma ocasião, foi parado e interrogado pela polícia secreta
fascista.
Ele
pediu para não ser incomodado e explicou que mexer em sua bicicleta
significaria atrapalhar o delicado ajuste aerodinâmico feito para um
campeão do esporte.
Os
policiais, então, não se atreviam a revistá-lo ou a mexer em sua
bicicleta.
As
famílias recebiam os documentos e conseguiam, assim, fugir da
perseguição nazista.
Além
de ajudar no transporte clandestino de documentos para facilitar a
fuga de judeus, Bartali também escondeu seu amigo Giacomo Goldenberg
e sua família em casa.
Era
arriscado — quem fosse pego fazendo isso poderia ser morto.
O
italiano foi reconhecido como Justo Entre As Nações — título
concedido aos que atuaram salvando vidas de judeus durante a
perseguição nazista — pelo Memorial do Holocausto Yad Vashem, em
Jerusalém. O filho de Bartali, Andrea, visitou o memorial em 2013.
No
fim da vida, Bartali contou a seu filho, em detalhes, o que fez
durante a guerra. Pediu, ainda a Andrea que mantivesse a informação
entre eles.
Bartali
queria ser lembrado por sua carreira esportiva. Mas, quando
perguntado sobre suas façanhas durante a guerra, dizia: "Fiz a
única coisa que sabia fazer: pedalei".
Às
vezes, é o suficiente.
Fonte:https://www.terra.com.br/noticias/mundo/o-ciclista-italiano-que-salvou-centenas-de-judeus-do-holocausto,dd53e7e3c1a3412f38fbea3b4d812defnkfqe3b3.html