Conversamos com Gabriele Greggersen, principal especialista em Lewis no Brasil
Há 67 anos, a pequena Lúcia se escondia em um
guarda-roupa durante um jogo de esconde-esconde contra os irmãos. Entre
jaquetas e casacos, ela acabou encontrando um novo mundo: trata-se de
Nárnia, uma terra onde animais falam, um leão é a autoridade máxima e
crianças humanas têm o poder de mudar a história.
O clássico faz parte da coleção
As Crônicas de Nárnia, escrita pelo britânico
C.S. Lewis. Foi a partir de uma
adaptação animada
da história, lançada em 1979, que a pesquisadora brasileira Gabriele
Greggersen conheceu o trabalho do autor: "O desenho passava na época do
Natal e tinha elementos que me deixavam emocionada".
Mal sabia
ela que aquele seria o início de uma parceria que levaria para o resto
da vida. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, a pesquisadora
dedicou os últimos 30 anos ao estudo e análise das obras do autor.
Considerada a principal especialista em Lewis no Brasil, Greggersen
recentemente traduziu cinco livros dele que estão sendo relançandos no
Brasil pela editora Thomas Nelson:
Cristianismo Puro e Simples,
A Abolição do Homem,
O Peso da Glória,
Os Quatro Amores e
Cartas de Um Diabo.
Conversamos com Greggersen sobre o papel da religião na obra de C.S. Lewis e a forma que
As Crônicas de Nárnia impactou seus leitores. Confira abaixo:
O cristianismo é uma parte muito importante da vida e da obra dele. Há algumas obras dele, como as de fantasia, em que isso não fica tão claro. Qual foi o papel da religião na obra dele?
Entendo
que ele não tinha intenção de fazer proselitismo. Encaro a forma de ele
tratar a religião na obra não religiosa como um reflexo natural, porque
um autor quando escreve expõe seu mundo interior. Nas entrelinhas,
aparecem valores do cristianismo, principalmente questões como amor ao
próximo, amizade, busca pela paz, justiça e a igualdade. Nos livros de
fantasia não há uma
necessidade obrigatória de ler a religião, tanto que
há pessoas que não fazem associação com religião nenhuma. Para mim, as
obras de fantasia dele não são religiosas: são escritas como clássicos
que são respeitados no mundo todo e que têm um conteúdo implícito
cristão, isso porque um autor não consegue desligar a crença dele na
hora de escrever. O objetivo não era veicular nenhum valor cristão
subliminarmente, mas de expressar seu tema interior.
Qual é a importância desses livros que estão ganhando novas edições no Brasil para o conjunto das obras do C.S. Lewis?
A
editora foi bem feliz na escolha das obras, porque são, nas
recomendações que se fazem sobre a ordem de leitura do Lewis, as
primeiras que devem ser lidas. Por exemplo,
Cristianismo Puro e Simples é a Bíblia do Lewis, ele trata de várias questões que depois serão tratadas em outros livros. O mesmo se aplica a
O Peso da Glória, que são sermões que ele dá abordando questões que depois o inspiraram a escrever outros livros. Já em
A Abolição do Homem, vemos o lado educador do Lewis porque nele, o autor trata de educação e ética.
Qual seria a ordem correta para começar a ler Lewis?
Para quem tem uma mente mais sistemática, sugiro
O Cristianismo Puro e Simples, mas para quem é mais imaginativo, e não necessariamente quer ficar filosofando, sugiro começar por
As Crônicas de Nárnia.
Como foi a experiência de traduzir algumas obras do autor?
Foi
um privilégio. Para mim, mais fácil que para outros, pois conheço o
autor e as obras todas. A maioria dos tradutores não tem esse estudo
todo do autor nem de todas as obras. Ao mesmo tempo, tive uma
dificuldade que foi de ficar muito emocionada e envolvida querendo
refletir e pensar e fazer novas teses. Mas foi um processo bastante
prazeroso.
Uma das palestras que você dá é voltada para os significados éticos e existenciais dentro de As Crônicas de Nárnia. Pode falar sobre o assunto?
É interessante ler
As Crônicas em paralelo com
Cristianismo Puro e Simples, em que ele fala mais claramente da ética. Lewis fala também em
A Abolição do Homem,
sobre o tal, que são os valores que ele considera universais na
humanidade, que não se aplicam só ao cristianismo, independente da época
ou da cultura. Quais valores? Os clássicos da ética aristotélica, por
exemplo, que são as virtudes cardeais, que tem a justiça, a temperança, a
prudência e a moderação. Esses valores aparecem em várias cenas de
As Crônicas:
quando as crianças, por exemplo, decidem dar a liderança à Lúcia,
apesar de ela ser a mais nova, eles foram prudentes, pois sabiam que a
Lúcia conhecia o lugar e que poderia ser uma guia melhor do que o irmão
mais velho. E eles também foram humildes nessa hora de reconhecer que
uma criança mais nova poderia ter liderança. Tem muitas cenas que
mostram coragem, justiça, sabedoria, esses valores transparecem nas
cenas de ação, nos diálogos, nas atitudes que as crianças assumem
durante o desenrolar da história.
Qual das crônicas é a sua favorita?
Sou
suspeita para falar porque a minha tese foi sobre “O Leão, a Feiticeira e
o Guarda-Roupa”. Acho que ela é a chave para entender. Tanto que
re-editei o livro da minha tese como “O Leão, a Feiticeira, o
Guarda-Roupa e a Bíblia”, pela editora Prisma. Mas gosto muito também de
“A Cadeira de Prata”, a próxima crônica que será lançada em filme,
porque a Jill recebe uma missão toda especial de resgate do mundo. Essa
ideia de que temos uma missão e que existe algo a ser resgatado é uma da
qual eu gosto muito. Também tem muita aventura e ação, o resgate do
príncipe, que está iludido por uma feiticeira, é toda uma trama da qual
eu gosto bastante.
Um dos outros tópicos que você aborda nos seus estudos é o Caspian como o “herói narniano”. O que isso significa?
Na
verdade, ele como herói de Nárnia foi um trabalho de Hollywood, que
gosta de heróis e anti-heróis. Acho que foi mais uma coisa da produção
cinematográfica de colocá-lo em destaque do que propriamente a intenção
do Lewis. O herói do Lewis é, na verdade, mais parecido com o do Tolkien
— que trabalha com o hobbit, o ser mais desprezível do mundo da Terra
Média, baixinho, que não gosta de aventuras, meio medroso —, uma figura
bizarra que não tem nada a ver com os super-heróis da Marvel. Mas
acontece que a figura do herói é universal e tem apelo, tanto que o
livro do Caspian é o que mais vende entre os meninos. É uma coisa meio
humana de querer ver o herói e escolher um salvador. Nesse sentido que o
Lewis trabalha a ideia do salvador. Mas a grande salvadora das crônicas
todas, para mim, é a Lúcia.
Por quê?
Primeiro que ela é uma das que
mais aparece nas histórias. A Susana sai no começo, o Pedro também fica
logo muito velho para participar. A Lúcia também tem um papel
importante, até mesmo em “O Príncipe Caspian”, é ela quem tem as visões.
Ela tem uma intimidade maior com o Aslam. Essa é uma ideia muito
cristã: os grandes santos são os que tiveram mais proximidade com Deus e
visões mais aproximadas da divindade. Entre os personagens de Nárnia, a
Lúcia é a que mais representa essa ideia do herói santo.
Fonte: http://revistagalileu.globo.com/Cultura/noticia/2017/11/cs-lewis-conheca-historia-do-autor-de-cronicas-de-narnia.html?utm_source=facebook&utm_medium=social&utm_campaign=post