sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

O ESTRANHO QUE SE TORNOU MEU PAI

Numa tarde de sábado, minha mãe insistiu para que eu pusesse minha melhor roupa porque queria me apresentar ao seu namorado. Ele estava agora lá fora, esperando no carro. Por que eu tinha que parar o que estava fazendo e trocar de roupa por causa dele? Por quê? Porque, como soube depois, ele a pedira em casamento na noite anterior. Ele já conhecia meu irmão e agora queria me conhecer.

Oi, senhor Cohan”, eu disse, louca para voltar para casa e continuar a jogar. “Oi, Susan”, respondeu o homem de meia-idade e cabelos crespos. Sua voz era suave, quase tímida, quando estendeu a mão e me cumprimentou.

Depois que ele e minha mãe se casaram, eu não sabia como chamá-Io. Por um bom tempo não o chamei de nada. “Leo” não parecia certo. Ele me chamava de Susan, ou Sue, como minha mãe e meu irmão. Ele não tinha de me chamar de “filha”. Eu tinha de chamá-Io de “pai”? Quem era aquele homem para mim? Parecia ser bondoso e delicado e até gostava da minha companhia. Mas um pai? Chamá-Io de pai o tornaria um pai?

Entrando para uma família que já tinha uma mãe, um garoto adolescente e uma menina de doze anos, Leo sabia que não seria automaticamente tratado como pai. Éramos um grupo há muito estabelecido. Ele era a peça nova a ser encaixada. Não que tivesse de competir com qualquer amor que sentíssemos por nosso pai “verdadeiro”, um homem frio e egoísta, que nunca fora bondoso nos anos em que tivemos contato. Leo tinha de competir com uma fantasia, nossas altas e irreais expectativas do que deveria ser um pai perfeito: amoroso, disponível,generoso, inteligente, bonito e sempre pronto a nos dar apoio. E, como todo pai perfeito, alguém que considerasse os filhos perfeitos também.

Ele provavelmente tinha suas próprias fantasias. Órfão desde criança, Leo tinha sido criado por irmãos e irmãs mais velhos que, embora o amassem, jamais puseram os interesses dele em primeiro lugar, como um pai ou mãe devotados fariam. Agora, aos cinquenta anos, ele se casara com uma mulher com dois filhos, aceitando todas as responsabilidades e obrigações financeiras que isso acarretava.

No primeiro ano em que nós quatro vivemos juntos, Leo passou um bom tempo consertando coisas em nossa casa. Era sua maneira de fincar raízes, de estabelecer uma base sólida para nossa nova família. Ele envernizou o painel de madeira do escritório, colocou papel de parede nos quartos e construiu armários de cedro no porão. Mas, enquanto nos tornávamos uma família, eu estava virando a típica adolescente: egoísta, desafiadora e rebelde. Minha mãe e eu, que sempre fôramos próximas, agora parecíamos discutir o tempo todo. “Por que você não pode se comportar?”, ela me perguntava, zangada. “Você não me deixa fazer nada do jeito que eu quero!”, eu contestava, saindo do quarto como um tufão.

Precisava falar com alguém e encontrei Leo no porão. Devagar, metodicamente, ele estava aplainando uma peça de madeira. Enquanto a lixava com cuidado, me deixou falar e me ofereceu um pedaço de lixa para ajudá-lo a aparar as arestas. “Ela é impossível! Grita comigo por qualquer coisinha. Tudo que faço tem de ser perfeito para ela aprovar”. Leo e eu passamos um bocado de tempo juntos no porão naquele primeiro inverno. Ele me ensinou a trabalhar com ferramentas de modo que eu também pudesse construir, pintar e consertar coisas. Trabalhar ali com ele foi uma boa maneira de extravasar minhas frustrações adolescentes. O porão, aonde minha mãe raramente ia, tornou-se um “porto seguro” para mim.

Meu padrasto estava lá para me ajudar sempre que eu precisava. Não resolvia meus problemas, mas me encorajava a organizar as coisas dentro da minha cabeça. Eu precisava de alguém que me ouvisse e ele fazia exatamente isso.

Sabe, você e sua mãe têm muito em comum. As duas são cheias de energia, corajosas e têm opiniões fortes. É por isso que às vezes uma irrita a outra. Mas é isso também o que eu gosto em vocês – nas duas”

Ele muitas vezes trazia surpresas para casa: um quadro para a parede do meu quarto, uma revista de esporte para meu irmão. No jantar, ouvia nossas histórias sobre o time da escola e nossas piadas bobas. Ele nos tratava como se fôssemos as crianças mais inteligentes do mundo.

Que tal essa?”, começava, e sabíamos o que vinha a seguir. Uma nova charada que ele ouvira no trabalho ou lera no jornal. Ele ria depois de termos acertado a resposta. “Sabia que não ia conseguir pegar vocês!”, sorria, orgulhoso.

No primeiro mês de agosto que passamos juntos fui de bicicleta fazer compras na cidade, levando todo o dinheiro que recebera no mês anterior fazendo pequenos serviços para os vizinhos. Entrei numa loja de artigos masculinos e um cheiro de loção após barba me intoxicou. Aos 13 anos, viera comprar meu primeiro presente de Dia dos Pais. Escolhi uma gravata de seda azul, enfeitada com fileiras de peixinhos, e a levei para casa. No domingo de manhã, quando a dei a Leo, ele a colocou imediatamente. “Muito obrigado, gostei muito”, ele agradeceu, beijando meu rosto. “De nada”, respondi. “Feliz Dia dos Pais, papai”. Falei aquilo da maneira mais natural possível, mas vi que ele sorriu. Tinha me ouvido.

Aos poucos, com o passar do tempo, nossa nova família criou suas próprias raízes e tradições. Leo nos viu entrar na universidade, casar e constituir nossas próprias famílias. Até morrer, aos 79 anos, ele dividiu muito de seu tempo e de seu amor com nossos filhos – seus netos. Levou-os para passear em seus carrinhos, leu para eles e os ninou. Mais tarde, ensinou-os a pescar e a trabalhar com ferramentas, como fizera comigo. Leo escolheu minha mãe – e a mim e a meu irmão também. Éramos família e amigos por escolha. Sua amizade e seu amor foram presentes dos quais jamais me esquecerei.

Susan J. Gordon

(Sermonário Semana da famíla 2019 - O Refúgio, p.29-31, da IASD)

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