“Eu vim
para que tenham vida, e a tenham com abundância”.
João 10:10
João 10:10
No evangelho de João, duas histórias curiosas são narradas nos capítulos
6 e 11. Embora as duas narrativas provavelmente não possuam uma conexão
intencional dentro da abordagem aqui proposta, existe um aspecto da condição
humana que vale ser evidenciado, respectivamente, em fragmentos dos capítulos
mencionados que serão destacados a seguir.
1) “E, entrando no barco, atravessaram o mar
em direção a Cafarnaum; e era já escuro, e ainda Jesus não tinha chegado ao pé
deles”. João 6:17
A história é interessante. Jesus acabara de
multiplicar pães e alimentar milhares de pessoas junto ao mar de Tiberíades
antes de passar para o outro lado rumo a Cafarnaum. Depois de operar tamanho
milagre diante dos olhos dos discípulos, os despede e, curiosamente, pede para
que eles tomem a dianteira na jornada rumo à referida cidade. Eles entram num
barco e durante a travessia o mar se avoluma de tal maneira que até mesmo
pescadores experientes, acostumados desde a infância com as rotineiras
intempéries do Mar da Galiléia, temem por suas vidas. É neste contexto que João
escreve a sentença acima: “e já era escuro, e ainda Jesus não tinha chegado ao
pé deles”.
2) “Então Jesus disse-lhes claramente: Lázaro
está morto; E folgo, por amor de vós, de que eu lá não estivesse, para que
acrediteis; mas vamos ter com ele.” João 11:14,15
A segunda história se conecta à primeira na
medida em que as reações humanas à ausência de Cristo se repetem. Relembrando
rapidamente. Jesus estava em outra cidade quando recebeu a notícia de que
Lazaro estava morrendo. É importante mencionar que os irmãos Lazaro, Marta e
Maria eram amados por Jesus e, aparentemente, faziam parte de um grupo seleto
de convivência próxima, íntima (João 11:5). Ao receber a notícia, Jesus faz
questão de atrasar um pouco mais sua chegada em Betânia e, no contexto em que
toma tal decisão afirma: “e folgo, por amor de vós, de que eu lá não
estivesse”.
A questão elementar não reside nos “finais
felizes” das histórias que já conhecemos, mas na angustia do hiato. E para além
disso, é importante lembrar que os discípulos que foram salvos da fúria do mar,
assim como Lázaro que foi ressuscitado quatro dias após a morte, estão todos
mortos. O que se impõe sobre a existência humana é a certeza das incertezas,
presentes no escuro da noite enquanto o mar se encapela. É a angústia que
resulta da nossa incapacidade de lidar com um DEUS que “folga” em ausentar-se
afim de que possamos crer. Nesta perspectiva, implicado no vazio, floresce o
crer. É insuportavelmente paradoxal conceber a idéia de que DEUS é amor, mas ao
mesmo tempo se alegra na angustia do homem diante de sua absoluta finitude. A
angústia do paradoxo, na perspectiva do filósofo Søren Kierkegaard, não pode
ser suportada pela razão humana, uma vez que consiste em um “salto de fé”. É o
rompimento com todo e qualquer pressuposto racional adquirido nos estágios
estético e ético das relações humanas.[1] Diante disso, contentamento cristão
pode ser a aceitação resignada de que a existência tal qual a somos capazes de
conceber, é forjada no hiato, no vazio, na certeza de que nossas vozes serão
caladas.
Outra conexão que emerge das duas histórias,
e que só encontra sustentação no paradoxo proposto por Kierkegaard, é que
apenas no campo fértil desta angústia específica –resultado de uma consciência
da finitude– que uma decisão irracional na forma de um salto pode emergir; pois
parece ser justamente o fato de que “esteja escuro” e “Jesus ainda não tenha chegado”,
que faz o homem absolutamente finito extrapolar a barreira da razão sob a
esperança de que “ainda que morra viverá”.
Fonte: http://terceiramargemdorio.org/texto/170/
Nenhum comentário:
Postar um comentário