sexta-feira, 20 de abril de 2018

#170


“Eu vim para que tenham vida, e a tenham com abundância”.
João 10:10

No evangelho de João, duas histórias curiosas são narradas nos capítulos 6 e 11. Embora as duas narrativas provavelmente não possuam uma conexão intencional dentro da abordagem aqui proposta, existe um aspecto da condição humana que vale ser evidenciado, respectivamente, em fragmentos dos capítulos mencionados que serão destacados a seguir.

1) “E, entrando no barco, atravessaram o mar em direção a Cafarnaum; e era já escuro, e ainda Jesus não tinha chegado ao pé deles”. João 6:17

A história é interessante. Jesus acabara de multiplicar pães e alimentar milhares de pessoas junto ao mar de Tiberíades antes de passar para o outro lado rumo a Cafarnaum. Depois de operar tamanho milagre diante dos olhos dos discípulos, os despede e, curiosamente, pede para que eles tomem a dianteira na jornada rumo à referida cidade. Eles entram num barco e durante a travessia o mar se avoluma de tal maneira que até mesmo pescadores experientes, acostumados desde a infância com as rotineiras intempéries do Mar da Galiléia, temem por suas vidas. É neste contexto que João escreve a sentença acima: “e já era escuro, e ainda Jesus não tinha chegado ao pé deles”.

2) “Então Jesus disse-lhes claramente: Lázaro está morto; E folgo, por amor de vós, de que eu lá não estivesse, para que acrediteis; mas vamos ter com ele.” João 11:14,15

A segunda história se conecta à primeira na medida em que as reações humanas à ausência de Cristo se repetem. Relembrando rapidamente. Jesus estava em outra cidade quando recebeu a notícia de que Lazaro estava morrendo. É importante mencionar que os irmãos Lazaro, Marta e Maria eram amados por Jesus e, aparentemente, faziam parte de um grupo seleto de convivência próxima, íntima (João 11:5). Ao receber a notícia, Jesus faz questão de atrasar um pouco mais sua chegada em Betânia e, no contexto em que toma tal decisão afirma: “e folgo, por amor de vós, de que eu lá não estivesse”.

A questão elementar não reside nos “finais felizes” das histórias que já conhecemos, mas na angustia do hiato. E para além disso, é importante lembrar que os discípulos que foram salvos da fúria do mar, assim como Lázaro que foi ressuscitado quatro dias após a morte, estão todos mortos. O que se impõe sobre a existência humana é a certeza das incertezas, presentes no escuro da noite enquanto o mar se encapela. É a angústia que resulta da nossa incapacidade de lidar com um DEUS que “folga” em ausentar-se afim de que possamos crer. Nesta perspectiva, implicado no vazio, floresce o crer. É insuportavelmente paradoxal conceber a idéia de que DEUS é amor, mas ao mesmo tempo se alegra na angustia do homem diante de sua absoluta finitude. A angústia do paradoxo, na perspectiva do filósofo Søren Kierkegaard, não pode ser suportada pela razão humana, uma vez que consiste em um “salto de fé”. É o rompimento com todo e qualquer pressuposto racional adquirido nos estágios estético e ético das relações humanas.[1] Diante disso, contentamento cristão pode ser a aceitação resignada de que a existência tal qual a somos capazes de conceber, é forjada no hiato, no vazio, na certeza de que nossas vozes serão caladas.

Outra conexão que emerge das duas histórias, e que só encontra sustentação no paradoxo proposto por Kierkegaard, é que apenas no campo fértil desta angústia específica –resultado de uma consciência da finitude– que uma decisão irracional na forma de um salto pode emergir; pois parece ser justamente o fato de que “esteja escuro” e “Jesus ainda não tenha chegado”, que faz o homem absolutamente finito extrapolar a barreira da razão sob a esperança de que “ainda que morra viverá”.

Fonte: http://terceiramargemdorio.org/texto/170/

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