quinta-feira, 26 de agosto de 2021

DESTAQUE: SOCIEDADE

 Sem máscara, menino autista foi barrado em viagem para conhecer o mar.

José Medeiros

Gabriel Malek Hannah, 9 anos, saiu de casa para conhecer o mar. Não passou do aeroporto. Autista, o menino não aceita nem boné na cabeça. Máscara, só amarrando, uma violência que o pai jamais lhe faria. Mesmo com essa condição, o embarque não deveria ser um problema. Uma lei federal garante viagens aéreas, terrestres e marítimas sem máscara para quem é autista. Só faltou os funcionários da companhia aérea conhecerem a legislação.

O garoto e os pais não foram questionados no check-in e nem no raio-x do aeroporto. Mas família com criança autista está acostumada a contratempos provocados por terceiros. Quando o embarque começou a ser organizado, o pai do menino, Richard Malek Hannah, 46 anos, foi ao balcão se certificar de que o filho poderia entrar no avião. Recebeu um não.

"Fiquei com muita raiva por dois motivos. Primeiro, porque liguei lá no SAC [Serviço de Atendimento ao Consumidor] da Latam. A moça disse que era só apresentar a lei e o laudo médico. Outra coisa que me deixou nervoso foi falarem que não conheciam a lei. É uma lei federal."

A assessoria de imprensa da Latam enviou nota lamentando o ocorrido e informou que atualizou seus funcionários a respeito dos procedimentos e das leis referentes ao uso de máscara. A companhia ressaltou que as regras envolvendo prevenção à covid-19 mudam com frequência.

Postura nova que não chegou a tempo de atender Gabriel. Richard conta que ligou para o SAC da Latam cinco dias antes do embarque, marcado para 15 de dezembro do ano passado. Àquela altura, Luciane Cristina Malek Hannah, 46 anos, preparava o filho para viagem. Gabriel tem hipersensibilidade a barulhos e ela ambientava o garoto aos sons do aeroporto e do motor do avião.

O ritual de preparação também incluía arrumar a mala com roupas de banho e de festas de final de ano. A família iria para São Paulo numa viagem especial. Passaria o Natal e o Ano-Novo com a tia de Gabriel. Também estava programada uma descida ao litoral, onde o menino conheceria o mar.

Embarque frustrado.

A família chegou ao aeroporto de Cuiabá por volta das 10 horas da manhã. O garoto, que só come alimentos amassados, logo almoçou para não sentir fome no voo. Mas sua primeira vez no avião foi adiada.

Ao ser impedido de embarcar, Richard mostrou a lei que dá direito a autistas viajarem sem máscara e apresentou o laudo médico. Os funcionários da Latam no balcão de embarque consultaram a supervisão da companhia no aeroporto de Cuiabá. Ninguém conhecia a lei.

Os pais de Gabriel procuraram a Polícia Federal. Ouviram que estavam amparados pela legislação, mas que a corporação não tinha poderes para agir. Richard procurou a Polícia Militar, mas ninguém atendeu as ligações. Era meio-dia, o avião partiria em 15 minutos. O casal não sabia, mas as portas da aeronave já estavam fechadas. Ninguém mais entraria naquele voo.

Procon entra na história.

Desamparado, Richard ligou para uma mãe que também tem filho autista. Foi orientado a procurar o Procon, o melhor conselho do dia. Em 20 minutos, dois advogados chegavam ao aeroporto para mediar a situação.

Até então, Gabriel se mantivera calmo. Ele tem hipersensibilidade para cores e estava fascinado por uma luz no teto do aeroporto que projetava um círculo no piso. Era o único que conseguia se divertir. Mas a hipnose acabou quando acompanhou os pais, os funcionários da Latam e os advogados do Procon até uma sala.

Richard conta que Gabriel foi tratado como uma ameaça sanitária pelos atendentes da empresa aérea. O menino não fala e demonstra os sentimentos à sua maneira. Ele se retraiu e não conseguia mais comer. Só foi se alimentar novamente em casa, no final do dia. Luciane ficou irritada. Depois, a raiva virou lágrima.

"Minha esposa chorou. Ela preparou a viagem e nunca esperou que uma empresa do tamanho da Latam ia deixar de seguir a lei. A gente espera isso de uma empresa pequena aqui da região, não de uma empresa deste porte."

Confrontada pelos advogados do Procon, a Latam aceitou consultar seu departamento de saúde. Descobriram que Gabriel poderia estar no voo. O pai do garoto não reclama dos funcionários, mas dos superiores.

"A moça não tem culpa. Ela estava seguindo as regras da empresa."

A caminho da praia.

Ficou acertado que a família viajaria no mesmo horário no dia seguinte. Eles chegaram em São Paulo em 16 de dezembro para aquela que era uma viagem os sonhos. Richard é contador e a esposa se dedicava a cuidar do filho. O casal não tinha dinheiro para férias tão distantes de Cuiabá. Só estava em outro estado porque ganhou as passagens da tia do menino.

No dia seguinte à chegada, Richard e Luciane amontoaram as coisas no carro para ir à praia. Gabriel ficou amuado. A última vez que suas malas foram parar num veículo desconhecido era o Uber do aeroporto de volta para casa depois da tentativa frustrada de viajar. O garoto temeu que o passeio estivesse acabado de novo. Relaxou somente quando percebeu que o caminho era diferente do que está acostumado a fazer em Cuiabá.

A família rumou para uma praia pouco frequentada do litoral paulista e Gabriel fez o que se espera de uma criança. Não queria mais sair da água e passou os dias brincando. Richard comemorava porque era a primeira vez desde o nascimento do filho que os três viajavam para longe.

Última recordação.

Richard disse que a melhor coisa que aconteceu foi ter procurado o Procon. O contador afirma que uma intervenção da polícia acabaria em boletim de ocorrência e processo. A Latam foi multada em R$ 3,1 milhões por descumprir o direito do autista — a empresa informou que vai apresentar esclarecimentos ao Procon. Com o órgão de defesa do consumidor agindo, a família viajou e ele entrou com processo por dano moral da mesma maneira.

Essas férias tiveram um significado especial na história da família. Em agosto do ano passado, os pais perceberam que Gabriel estava regredindo, já não conseguia mais sair às ruas porque o barulho do trânsito o incomodava. Mesmo com a pandemia, o casal decidiu retomar o tratamento e levar o garoto ao psicólogo e à musicoterapia.

Em fevereiro, passaram a fazer o tratamento completo. Mas Luciane foi infectada pelo coronavírus. Conforme o quadro clínico se agravava, a preocupação da família crescia.

Gabriel ficou órfão de mãe em 8 de março, Dia Internacional da Mulher.

Fonte: Em https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2021/08/25/desrespeito-a-direito-do-autista-adiou-viagem-de-menino-para-conhecer-o-mar.htm?cmpid=copiaecola

Nenhum comentário: