terça-feira, 21 de julho de 2020

#34


O genial escritor mineiro Guimarães Rosa escreveu o conto “A terceira margem do rio” [1]. Ele narra as peripécias de um pai que diz adeus à família e embarca numa canoa que fabrica. Não atravessa o rio, mas fica “naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais.” As aflições da família e dos amigos, as insistências para o pai voltar e as tentativas de diálogo, nada o demovem da decisão de permanecer nas águas. A canoa seria a terceira margem para aquele pai? Falar de margens é falar de rios.
Quantas margens têm um rio? Por ter resposta óbvia, a pergunta exige reflexão que inclua o sentido do rio: um constante ser e fluir de significação. Águas a fluírem mostram que o sentido nunca é fixo. O sentido não tem limites; nossa percepção, sim. O rio é uma forma de pensamento: é preciso estar e é preciso fluir. Sempre que interpretamos, estamos em réplica. Construímo-nos de modo newtoniano. Mas é possível constituir uma terceira forma de pensar. Instável? Sim, assim como as águas de um rio que, por isso mesmo, têm força capaz de refazer as fortalezas das margens. Não são as margens que limitam o rio. É o rio que determina as margens. Se o rio para, passa a ser lagoa. A mente estagna, morrem as ideias, a fala, o pensamento, e limita o sentido e a vida.
É necessário sempre buscar novos sentidos; receber os novos que são os que se foram e voltaram renovados, porque o leitor nunca é o mesmo. A vida é agora. E o agora é constituído do ontem. Mas é inédito. Todas as nossas ideias já foram pensadas, “roubadas” de nós. Por isso são sempre novas quando as reconquistamos. Como o filho pródigo que aceita ser amado e passa a ser um novo filho, mais bonito, posto que com anel, sandálias e novas vestes. É preciso festejar porque uma nova ideia velha foi ressignificada.  O ciclo dos rios revela isto: fluir, desembocar, evaporar, precipitar. As águas que vemos de um rio são sempre as mesmas; são sempre outras.
Nada novo debaixo do sol. Mas as grandes reformas que mudaram o mundo exigiram nova forma de pensar, pesquisar e agir, pois as velhas águas, um dia, voltam a precipitar. Que ideias Martinho Lutero, Mahatma Gandhi e Nelson Mandela defenderam? A antiga liberdade. A novidade está em romper as ideias cristalizadas. Essas personalidades avançaram a uma terceira margem dos sentidos. Já sobrevoou a maior bacia hidrográfica do mundo? Os rios da Amazônia revelam que as margens são tantos quantos braços tiverem um rio. Por isso os rios amazônicos são pujantes, desejáveis e imperiosos; não se limitam às duas margens do rio que desenhamos no jardim de infância.
Tudo isso dá vertigem? Paulo também a teve tanto que, após seu chamado, ficou pela Arábia, Damasco e Tarso [2] por três anos, recompondo-se de uma nova ideia, nova interpretação. Ele pensava somente assim: judeu com direito à salvação; gentio, à perdição. Duas margens limitadoras da graça salvadora. A terceira margem era: gentio com direito à salvação.
Assim, a terceira margem é o terremoto que causa a ousadia de expressar o pensamento que, ainda que seja velho, dito, é novo para quem o profere. Quando a  visão de mundo definido por duas margens newtonianas [3] não nos ajudam a viver bem, então está na hora da terceira margem que também não garante a felicidade. A descoberta, por isso, é nova sempre. É preciso tempo para passar o enjôo, reequilibrar e avançar.
Afonso Ligório Cardoso
[1] ROSA, Guimarães. A terceira margem do rio. In:___Ficção completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. P. 409 – 413.
[2] Gálatas 1:17-18
[3] WHEATLEY, Margareth. Liderança e a nova ciência: descobrindo a ordem num mundo caótico. São Paulo: Cultrix, 2006.

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